Uma Terra cheia de pegadas

Mesmo afastados do contato com a natureza e radicados em blocos quilométricos de concreto, asfalto e vidro, tudo o que consumimos e utilizamos em nossas vidas é fornecido, no final das contas, pela natureza. Aquela ideia do efeito borboleta – na qual tudo está ligado, havendo repercussão do mais simples evento em toda a teia – cabe muito bem quando o assunto é impacto ambiental. Não pensamos muito nisso, mas fazemos uso dos recursos naturais o tempo todo, para tudo. Não existimos, nem por um segundo, sem que alguma coisa nos esteja sendo fornecida a partir do meio natural. Até dormindo causamos efeitos ambientais negativos, pois com certeza a geladeira estará ligada conservando o queijinho e o iogurte de amanhã cedo - e consumindo energia elétrica obtida a partir de rios represados.

Uma reflexão mais profunda sobre o assunto nos leva ao seguinte entendimento: de que as escolhas de consumo que fazemos são, na verdade, as grandes causadoras da crise ambiental que o planeta enfrenta. Somos 7 bilhões de seres humanos, hoje – e qualquer coisa multiplicada por 7 bilhões dá um número bem grande. Imagine, por exemplo, esse montante multiplicando a média de 1 kg de lixo produzido por pessoa no mundo, ou a média mundial de consumo diário de água per capita, algo em torno de 200 l... Bastante lixo e bastante água, o tempo todo.  Então, ao aprofundarmos ainda mais a reflexão sobre nossos padrões de consumo e seus efeitos, surge a certeza de que conhecê-los e quantificá-los seria, além de curioso, bastante útil. Afinal, informação é poder. Saber o tamanho do problema ajuda a resolvê-lo. Mas, como podemos medir o impacto ambiental negativo que nossas escolhas de consumo provocam? Como podemos obter valores numéricos a respeito dos recursos naturais que consumimos – valores que sirvam como guia para readequação dos padrões de consumo, visando um modo de vida mais sustentável? A resposta para estas perguntas está em um cálculo chamado pegada ecológica.

 Na década de 1960 - com o despertar da preocupação ecológica nas sociedades ocidentais e o consequente aumento na produção teórica sobre o assunto - pesquisadores chegaram a um modelo matemático que poderia ser utilizado para gerar índices que traduzissem, em números, o tamanho das marcas que a humanidade deixa na natureza. Ou melhor, o quanto nossas “pegadas” são profundas sobre a Terra e sobre os recursos que ela nos oferece. Resumidamente, os cálculos de pegada ecológica são grandes somatórios – que levam em conta demandas ambientais decorrentes de nossa ocupação do planeta, geradas basicamente pelas escolhas de consumo que fazemos e o estilo de vida que adotamos.

Os parâmetros utilizados para os cálculos de pegada ecológica correspondem ao que a natureza pode nos oferecer mais sua capacidade de absorção e ciclagem de nossos subprodutos. Esses parâmetros retratam a biocapacidade do planeta. Após a inserção desses dados nas fórmulas matemáticas da pegada ecológica, os resultados obtidos correspondem a áreas em hectares (hectares globais, gha), que representam o espaço produtivo no planeta necessário para que uma pessoa viva por um ano, extraindo todos os recursos naturais de que necessita. Outros dois cálculos importantes compõem a família das pegadas: a pegada hídrica e a pegada de carbono. Cada um deles dispõe de técnicas específicas e, combinados, contribuem para o cálculo de pegadas ecológicas mais precisas. A pegada ecológica pode ser calculada para pessoas, grupos, empresas, cidades, países - tudo depende, no entanto, da acuidade dos dados de biocapacidade disponíveis para os cálculos.

A metodologia de obtenção dos valores de pegada ecológica é revista e refinada periodicamente, através de estudos e publicações acadêmicas – esforço mantido pela organização internacional Global Footprint Network, com sedes na Europa e Estados Unidos. Essa organização, estabelecida em 2003, tem como objetivo gerar e processar dados a respeito do impacto ambiental negativo da humanidade sobre o planeta oferecendo, a governos e sociedades, material estatístico para a tomada de decisões sobre preservação ambiental. A Global Footprint Network utiliza informações fornecidas por relatórios de entidades como ONU (Organização das Nações Unidas) e FDA (Food and Drug Admnistration, EUA), sobre produção agrícola mundial, consumo global de água e de energia, mercado de commodities, entre outros, formando uma matriz de dados sobre a biocapacidade mundial. Também são utilizadas informações estatísticas de parceiros locais, presentes em mais de 200 países e territórios, para a realização dos cálculos de pegada ecológica ao redor do mundo. Anualmente são publicados relatórios com as pegadas ecológicas desses países e territórios. No entanto, é cada vez mais comum que cidades busquem, independentemente, seus valores de pegada ecológica - a fim de modificarem suas políticas ambientais e, consequentemente, a qualidade de vida oferecida a seus habitantes. No Brasil, Campo Grande e São Paulo foram pioneiras neste tipo de iniciativa. Já se uma pessoa quiser saber sua pegada ecológica individual, no site networkfootprint.org é disponibilizada uma calculadora, de fácil manuseio, para esse fim.

Pegadas ecológicas sustentáveis vão até o valor-limite de 1,8 gha. Traduzindo: se cada habitante da Terra utilizar 1,8 hectares de terras produtivas por ano, para a manutenção de suas atividades, o planeta será capaz de manter e renovar seus recursos naturais sem problemas. Quando a pegada ecológica começou a ser calculada, há mais de 50 anos, o valor obtido para o Brasil era algo em torno de 0,9 gha. Éramos muito sustentáveis - poderíamos viver em apenas meio Brasil sem prejuízos de produção, ou dobrar a demanda de produtividade de nossas terras, sem prejuízos ambientais. Hoje, a pegada ecológica brasileira é de insustentáveis 2,9 gha – ou seja, precisaremos de um Brasil e meio, num futuro próximo, para manter nossos estilos de vida atuais; ultrapassamos em 50% o patamar da sustentabilidade.  Na verdade, nosso desempenho poderia ser ainda pior, não fosse a gigantesca biocapacidade da qual dispomos e que empurra o índice para baixo. De qualquer forma, passamos de credores ambientais mundiais para devedores, em meio século – com uma pegada ecológica acima da média mundial de 2,7 gha, que é péssima. Já a pegada ecológica da Índia, em 2015, alcançou os mesmos 0,9 gha que tivemos em 1961 - com uma simples diferença: a população humana indiana é de 1 bilhão de indivíduos(!). Será que este resultado é porque lá a vaca é sagrada? Provavelmente sim. E o resultado norte-americano, próximo a 10 gha? Bem, isso acontece porque lá o mercado é sagrado.

Hoje se fala muito em sustentabilidade, ou em desenvolvimento sustentável. Contudo, ao largo das campanhas publicitárias verdes, que tentam transmitir a falsa sensação de que algo está sendo feito pelas empresas e governos em prol da natureza, encontra-se o consumo individual de cada um. As informações fornecidas pelas pegadas ecológicas dos países constituem, sim, uma base sobre a qual governos e sociedades organizadas devem trabalhar a fim de reduzir impactos ambientais gerais, através de ações e políticas em macroescala. Mas esperar por políticas públicas no Brasil (e no mundo, quando o assunto é meio ambiente) não é uma estratégia inteligente. Sem dúvida, será a partir das tão difíceis mudanças de hábito e de comportamento - dentro de nossos lares, dentro de nós mesmos – que alcançaremos modos de vida verdadeiramente sustentáveis. Não precisamos virar hindus para termos pegadas ecológicas mais brandas – precisamos apenas saber que, para a produção de 1 kg de carne bovina são gastos 15 mil litros de água, e procurar reduzir o consumo desse item. Trata-se de uso da consciência. Também é de grande valia, para reduzirmos nossas pegadas ecológicas, nos imunizarmos contra a ação maléfica da propaganda. Por exemplo: em vez de consumirmos um néctar de laranja orgânico – detentor de selos e certificados ambientais mas produzido por uma gigante multinacional com pegada ecológica norte-americana, que conta com uma publicidade extremamente eficaz em horário nobre da TV - passemos a comprar nossas laranjas na feira. Laranjas de um produtor familiar local, colhidas talvez ainda hoje. Laranjas que fomos comprar de bicicleta e das quais faremos um belo suco quando chegarmos em casa. Parece muito mais interessante.

Claro, se fossem enumerados todos os pontos que podemos mudar em nossas rotinas com a intenção de diminuir nossas pegadas ecológicas, certamente o volume de informações seria extraordinário. Mas, sinceramente, não é um assunto para ser tratado apenas através de cartilhas - mesmo porque o conhecimento nessa área ainda está sendo produzido, incluindo a busca por definições, conceitos e técnicas. Para caminharmos em direção ao desenvolvimento sustentável real e executável, as mudanças terão de ocorrer, necessariamente, em nossa forma de lidar com o consumo. Tais mudanças, por sua vez, são profundas - e somente serão sustentadas por meio de reflexão contínua, atitude positiva, disposição para sair das zonas de conforto. Discursos, modismos e grandes grupos empresariais não salvam o planeta. Fechar a torneira enquanto se escova os dentes salva. Uma vida simples, também. Pense nisso.

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